Esta minha carta não é
dotada de palavras geniais, mas me recuso a deixá-las soarem triviais. Sim,
porque acima de tudo, ela é verdadeira. Não sei para quem ela será destinada,
mas ela é verdadeira, e pra mim isso é o importante e portanto já é o suficiente
por hora. Ela talvez não chegue à caixas de correio. Se chegar, talvez não seja
notada. Se for notada, talvez não seja lida. Se for lida, talvez seja jogada
fora. Mas o importante é que ela vai ser enviada, seja como for.
Nessa carta falo que a
essência humana tem sido deixada de lado. Falo que quero amar, e amar mais
ainda as pessoas. Mas roubaram meus sentimentos, e eu não sei mais onde eles
estão. É por isso que temo que minha carta se perca: ela fala a verdade.
Falo também do meu tempo:
um tempo dúbio. As pessoas ora têm esperança, ora desacreditam no futuro.
Inclusive eu. É a velha história: um ceticismo que no fundo é falso. Ou seria
ao contrário?
Algumas pessoas já foram
para o outro lado. Algumas ainda não, mas já se foram também. De algumas aguardo
a volta, demora ela ou não. Talvez destine essa carta para elas. Direi-lhes o
quanto as espero, aqui, do outro lado, ou na linha tênue.
Falo que o sono acabou.
Ninguém mais consegue fechar os olhos e descansar em paz. Estão cuidando da
vida dos outros - sem se importar com eles, obviamente. Estão preocupados com o
próximo passo, o próximo dia que ainda nem começou, com a conta que atrasou
dois dias porque não há como pagá-la, e com as que ainda virão daqui a uns
anos. Os testes trazem a insônia. E aí vem as drogas para dormir e para
acordar. Relógio medicamentoso.
Essa carta não enviará
boas-novas. Se alguém a receber, não ficará feliz com o seu conteúdo, pois é
tempo de se conseguir corpos. è tempo de salvar o próprio corpo, e depois se
esconder atrás de uma colina, ou num vale profundo. As lembranças são amargas,
não há porque sorrir. Mas mesmo assim estamos sorrindo. Não há porque amar. Mas
peço nessa carta pelo amor. Isso é um sinal de tempos ruins. Mas ainda é uma
carta - e traz em si a poesia do mundo.
"quando só há lembrança,
ainda menos, pó,
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
quem acaso repouse
na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta."
Carlos Drummond de Andrade - A Carta
"Este é o quarto, o início de tudo
Através da infância, através da
juventude, me lembro de tudo
Tenha visto as noites, repletas de violência e dor
E os corpos conseguidos, os corpos conseguidos
Onde terminará? Onde terminará?
Onde terminará? Onde terminará?"
Joy Division - Day Of The Lords