Adolescência. Adolescência na biblioteca.

Posted: quinta-feira, 17 de março de 2011 by Luis Tertulino in Loucuras usadas: , , ,
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Eis a seguir um trecho de um livro do Bukowski que eu estou lendo, "Misto-quente":


"Descobri a Biblioteca Pública de La Cienega. Fiz um cartão de registro. A biblioteca ficava próxima à velha igreja descendo a West Adams. Era uma biblioteca bastante pequena e havia apenas uma bibliotecária trabalhando lá. Era classuda. Devia ter uns 38 anos, mas seus cabelos eram completamente brancos, presos num coque na altura do pescoço. Seu nariz era afilado, e ela tinha olhos de um verde profundo por trás dos óculos sem aros. Eu sentia que ela sabia tudo.
Eu caminhava pela biblioteca à procura de livros. Tirava-os das estantes, um a um. Mas todos não passavam de truques baratos. Eram de uma tolice sem fim. Páginas e mais páginas de palavras que não diziam nada. Ou, se diziam, levavam tempo demais para dizê-lo, e quando o faziam você já estava cansado demais para que tivesse importância. Tentei livro após livro. Claro, entre todos aqueles livros tinha que haver um.
Todo dia eu caminhava até a biblioteca seguindo a Adams e a La Brea e lá estava a minha bibliotecária: austera e infalível e silenciosa. Seguia retirando os livros das estantes. O primeiro livro de verdade que encontrei era de um sujeito chamado Upton Sinclair. Suas frases eram simples, e ele falava com raiva. Escrevia com raiva. Escrevia sobre as penitenciárias imundas de Chicago. Ele não fazia rodeios, dizia as coisas claramente. Então descobri outro autor. Seu nome era Sinclair Lewis. E o livro se chamava Rua principal. Ele descascava as camadas de hipocrisia que cobriam as pessoas. Parecia apenas que lhe faltava paixão.
Eu voltava para buscar mais. Lia um livro por noite.
Um dia, zanzando pela biblioteca, lançando uns olhares furtivos para minha bibliotecária, me deparei com um livro cujo título era Bow Down to Wood and Stone¹. Agora sim, esse era bom, porque isso era algo que todos fazíamos. Finalmente, algum fogo! Abri o livro. Era de Josephine Lawrence. Uma mulher. Tudo bem. Qualquer um pode adquirir cultura. Folheei as páginas. Mas eram iguais às dos outros livros: efeminadas, obscuras, tediosas. Coloquei o livro no lugar. E enquanto minha mão estava ali, peguei o livro mais próximo. Era de outro Lawrence. Abri o livro aleatoriamente e comecei a ler. Era sobre um homem ao piano. Num primeiro momento, como pareceu falso! Mas segui lendo. O homem ao piano estava perturbado. Sua mente dizia coisas. Coisas obscuras e curiosas. As frases na página estavam bem comprimidas, como um homem gritando, mas não como 'Joe, cadê você?'. Era mais como 'Joe, onde estão as coisas?' Esse era o Lawrence das frases comprimidas e sangrentas. Nunca tinha ouvido falar dele. Por que o segredo? Por que ele não era divulgado?
Eu lia um livro por dia. Li todo o D. H. Lawrence disponível na biblioteca. Minha bibliotecária começou a me olhar de modo estranho quando eu retirava os livros.
- Como você está hoje? - ela perguntava.
Aquilo sempre soava maravilhosamente bem. Era como se eu já tivesse ido para a cama com ela. Li todos os livros do D. H.. E eles me levaram a outros. A H. D., a poetisa. E a Huxley, o mais jovem dos Huxley, amigo de Lawrence. Todos vieram correndo até mim. Cada livro levava ao próximo.
Dos Passos veio na seqüência. Não era dos melhores, de fato, mas bom o suficiente. Sua trilogia sobre os Estados Unidos tomou mais de um dia para ser lida. Dreiser não me disse nada. Sherwood Anderson, sim. E então veio Hemingway. Que emoção! Ele sabia como escrever uma frase. Era um prazer. As palavras não eram tolas, as palavras eram coisas que podiam fazer sua mente zunir. Se você as lesse e deixasse que sua mágica operasse, era possível viver sem dor, sem esperança, independente do que pudesse lhe acontecer.

Mas de volta ao lar...
- LUZES APAGADAS! - gritava meu pai.
Agora eu estava lendo os russos, lendo Turguêniev e Górki. A regra de meu pai era que todas as luzes fossem apagadas até as oito da noite. Ele queria dormir para que pudesse estar bem disposto e pronto para o trabalho no dia seguinte. O único assunto de suas conversas em casa era "o trabalho". Falava de seu "trabalho" para minha mãe desde o momento em que entrava pela porta ao entardecer até a hora em que os dois iam dormir. Ele estava determinado a conseguir uma promoção.
- Tudo bem, chega desses malditos livros! Luzes apagadas!
Para mim, esses homens que haviam entrado em minha vida, vindos de lugar nenhum, eram minha única chance. Eram as únicas vozes que falavam comigo.
- Tudo bem - eu respondia.
Então eu pegava minha luz de cabeceira, me arrastava para debaixo das cobertas, puxava o travesseiro ali para baixo e lia cada novo livro, apoiando-o no travesseiro, sob as cobertas.
Ficava muito quente ali embaixo, a lâmpada esquentava, e eu sentia dificuldade em respirar. Era obrigado a erguer as cobertas para respirar.
- O que é isso? Estou vendo uma luz? Henry, sua luz está apagada?
Eu fechava rapidamente meu casulo e esperava pelo ronco do meu pai.
Turguêniev era um sujeito muito sério, mas ele podia me levar ao riso porque encontrar uma verdade pela primeira vez pode ser uma experiência muito divertida. Quando a verdade de outra pessoa fecha com a sua, e parece que aquilo foi escrito só para você, é maravilhoso.
Lia meus livros à noite, desse jeito, debaixo das cobertas com a lâmpada superaquecida. Lia todas aquelas belas frases enquanto me sufocava. Era mágico.

E meu pai tinha encontrado um emprego, e isso era mágico para ele..."

Eu já estou na metade do livro. Ele está cada dia melhor, e tem me deixado de boca aberta e sem ar, me comoveu por completo já! Recomendo a leitura.

¹ "Curvando-se diante da madeira e da pedra". Livro de 1938, não publicado no Brasil